e se 

a  sua fome 

naquele minutinho

que você ainda não comeu 

não afeta 

a sua reflexão 

sobre a fome alheia

talvez o espelho 

do retrovisor 

esteja embaçado

eliana pichinine 

quem deixa as crianças

em casa

com febre 

e sem creche 

e reza para nada pior 

acontecer

porque precisa

levar as crias

dos patrões 

para a escola? 

eliana pichinine

quem quase não dorme

e acorda de madrugada

anda quilômetros 

para conseguir 

acesso ao transporte público 

e tenta chegar  ao local de trabalho

com um sorriso no rosto

fingindo que não está em exaustão? 

eliana pichinine 

 quem prepara 

o escargot 

o caviar

a carne suculenta 

dos cardápios 

bordados de ouro 

expostos

em vitrines de restaurantes

de proprietários 

que relativizaram 

a morte de pessoas idosas

na pandemia?

eliana pichinine 

 quem produz

 a  toalha

que seca 

o suor 

da patroa e do patrão?

eliana pichinine

 quem prepara 

o escargot 

o caviar

a carne suculenta 

dos cardápios 

bordados de ouro 

expostos

em vitrines de restaurantes

de proprietários 

que relativizaram 

a morte de pessoas idosas

na pandemia?

eliana pichinine 

 vento

belamente 

desaprumado

trouxe 

os 

dentes-de-leão

para 

o algodoeiro 

eliana pichinine

             o que é urgente

                      em ti 

                   deflagra 

           as tuas emergências?

                 eliana pichinine

 para Cláudia Abreu *

talvez um pouco

de Virgínia more aí:

num olhar 

profundo

e na beleza 

de uma talentosa mulher 

que brilha 

com profundas 

imersões  sobre a vida 

com licença poética 

diria que um palco todo seu 

acolhe o  movimento 

corporal de suas palavras 

eliana pichinine 

* em homenagem ao monólogo : Virgínia 

 ampulheta 

 

alada 

engasgada

e também 

encantada

respira 

e não necessariamente 

na mesma ordem 

recomeça  

a cada dia 

eliana pichinine  

 rastro

a combinação letal 

nunca foi a mistura 

do leite com a manga 

mas sim  

a crença nesse perigo

o rastro  

da escravização

impregna mentes 

e tenta cerrar esperanças

mas há também 

o rastro das rodas

ancestrais 

rodemos

               eliana pichinine

 

o dia está colorido

além do azul celeste

o branco e o azul marinho

em cima das casas:  caixas-d’água  

parecem uniforme de escola pública 

do município carioca

outras pitadas de cor passeiam por aqui

o verde nas montanhas ao longe

e nas árvores que ainda não foram

cortadas por órgãos oficiais da prefeitura

o cinza dança na textura dos prédios

e nas fumaças dos automóveis

o sol e as sombras na calçada

trabalham juntos

os telhados seguem monocromáticos

conforme os blocos de montar cidades

que as crianças costumam brincar

 

rondando a janela do poema

 a brisa

soprou aquarelas?

 

eliana pichinine

 

 

 quem já passou por isso entenderá 

unha quebrada pela metade

não dá para ser extirpada imediatamente 

talvez aí  esteja o segredo: 

aguardar a hora certa

dela cair

 tentando cuidar do processo 

da retirada 

respeitando o dedo 

a pele

e a própria unha 

eliana pichinine

conversa franca por dentro do espelho 

você gira em torno de quê? 

gera quais tipos de entornos? 

com qual quilate brilha o seu íntimo? 

não vale citar  pedra preciosa 

sem levar em conta as consequências  da exploração dos minérios 

surpreenda a sua imaginação 

e extraia da sua jazida

a potência genuína 

e responda para si 

sem distrair as suas próprias

verdades momentâneas:

quem é você na fila do sol?

 eliana pichinine 

 capitalismo

 escassez 

 abundância 

e a  desigual 

distribuição 

na balança 

eliana pichinine 

 encantamentos 

a borboleta surgiu 

em meio aos escombros 

eliana pichinine 

 quando 

você desaparecerá?

indago 

à queimadura 

no meu braço 

ela responde 

que a pele 

está se recompondo 

para acolher a cicatriz

que permanecerá 

eliana pichinine 

o coração 

é uma viela 

um pedaço 

de céu estrelado ou não 

uma botija com hortelã 

um camafeu  decorado

uma  linha com e sem nó

um tapete decorado 

um bordado por fazer 

um riacho  

um monte de pulsação

uma ferramenta multifacetada

um oráculo

uma esfinge 

uma fotografia do pensamento 

uma artéria arteira 

uma ponte

um hiato

um arco-íris na montanha 

um papel machê em formação 

um pingo 

uma cachoeira 

um punho fechado 

um corpo aberto 

                             eliana pichinine

quando você chega perto do sol

e de todas as estações da vida 

sente o brilho

a chuva 

a ventania

a brisa

a folhagem

a inundação 

escuta a cotovia 

acena para o beija-flor 

admira a sempre-viva 

reconhece terrenos baldios

areia movediça 

lavas de vulcão

labirintos

cirandas  

sorrisos sinceros e redes de afeto

separa o raso do profundo

faz escolhas infinitamente momentâneas 

entende que sobra de tempo 

não é tempo de sobra 

 

eliana pichinine

quando eu descobri

o nome da flor

que representa 

a minha infância 

e os passeios de bicicleta

pelas ruas de Thomáz Coelho

fiquei muito feliz:

vinca 

planta que veio de  Madagascar 

e encanta as minhas lembranças 

às vezes 

o ato de nomear

aconchega o coração 

eliana pichinine

    o

 afeto

 age

borda 

e 

aborda 

 

com uma

cadência 

inigualável

eliana pichinine

 eu quero 

escolher

usar ou não

 

o sutiã

quantas convenções 

marcam ou marcaram 

 a sua pele 

também?  

eliana pichinine

a tristeza 

é 

senhora de si

a 

alegria 

também 

eliana pichinine 

o amor 

é

garrafal

 

o resto 

é o diminuto 

plágio 

eliana pichinine

 

quem beija a flor?

quem

beija-flor

quem beija a flor 

e a náusea de Drummond? 

eliana pichinine